Karolina foi o maior estrupício que eu encontrei na minha vida.
Ah, mulher bagunceira da mulesta... Mulher cangaceira... Conheci Karolina num forró que eu tava tocando. Quando avistei aquela mulherzona diferente no meio do salão, sem dançar com ninguém, só mangando dos matutos, eu pensei comigo: "Aquilo deve ser um pedaço de mau caminho... Mulher bonita, morena trigueira... Cabelo comprido, boa linha de lombo..."
Aí eu comecei a caprichar no fole véio pra ver se ela dava fé de mim. Mas ela nem fé deu. E eu pensei comigo: "Deixe estar, danada. Se aparecer aqui um colega pra me dar uma ajuda eu vou aí pra tu ver o que é bom pra tosse."
Aí apareceu o Anselmo.
"Ô Anselmo, pega essa sanfona aqui."
Anselmo pegou a sanfoninha, fui na banca de Sá Marica. "Sá Marica tem cerveja? Bote um cálice. Cervejinha é essa, Sá Marica? Só tem escuma!"
"Oxente? Cerveja quente é assim mesmo!"
"Apois. Bote duas encangadas aí no fundo do pote, que eu volto mais tarde."
Aí me botei pro salão com mais de mil. Cheguei perto dela e disse:
"Que mal pergunte, é vosmecê que é a Karolina?"
Ela escorou na perna esquerda, descansou a direita, botou a mão nos quartos, balançou e disse:
"Pergunta é bem. Karolina com K".
Ha.
"Quer dançar mais eu?"
"Só se for agora."
Abufelei. E saí com essa mulher.
Joguei ela pra direita, ela veio; joguei ela pra esquerda, ela tava aí -- a mulher era adivinhona... Chamei a mulher no vôo do carcará -- sabe como é o carcará, né? Ele voa na vertical, pára no ar e fica peneirando... Aí eu vim descendo com ela bem devargazinho nos meus braços. Quando ela triscou os pés no chão, deu uma gaitada:
"Hahai, é hoje!"
"É hoje mesmo!"
Aí saímos fazendo aqueles fuxicos todos. A mulher pegou o cabelão, enrolou na mão -- assim como vaqueiro quando vai derrubar boi --, pendeu a cabeça por um lado e saiu rodando... E eu rodando mais ela, e dando cheiro no cangote dela. A essa altura nós já tava fazendo era teatro. Era o maior burburinho do mundo. Aí eu disse pra ela:
"Karolina, vamo acolá?"
Ela respondeu:
"Bora..."
Chegamos na banca de sá Marica. "Sá Marica, cervejinha!" Ela botou uma, nós bebemos. "Bote mais uma!" Ela botou a outra, nós bebemos. "Sá Marica, bote mais duas encangadas aí no fundo que nós vamos voltar mais tarde."
Voltamos pro salão. Nós não tava fazendo aquelas misérias todas mais não. Aí nós já tava sereno. Nós já tava daquele jeito... Maior felicidade.
Aí Zé de Bahia chegou, bateu a mão no meu ombro e disse:
"Gonzaga, acabou a festa."
"Oxente? Acabou a festa?"
"Acabou pra você. Você agora vai tocar. Você que é o tocador? Você tá aqui fazendo arte, tá fazendo até teatro, vá tocar."
"Pois tá certo!"
Cheguei perto do Anselmo e disse:
"Anselmo, passa a sanfona pra cá e vai dançar com Karolina. Mas não vão pra longe não, hein? Fiquem dançando aqui em volta de mim."
Anselmo achou foi bom. Aí eu caprichei.
De vez em quando Anselmo passava por perto de mim, Karolina dava uma rabanada de vestido pra riba d'eu, cobria a sanfona... E eu sentia só aquele cheirinho de flor de amor... Maior felicidade.
Aí Zé de Bahia gritou de lá: "É cinco mil-réis! Tá na hora da cota! É cinco mil-réis! Quem não pagar não dança! É cinco mil-r -- nãããão... Tá conversando, hôme? Oxente? Não quero cocoré nem choro baixo. É cinco mil-réis! Cinco mil-réis! Cinco mil-réis! Cinco mil-réis!
Também foi ligeiro. Fez a cota, chegou perto d'eu e disse: "O teu tá aqui..."
Eu disse: "Anselmo, passa a sanfona aí pra Pedro Minha Garrafa." Sanfona na mão de Pedro Minha Garrafa, Zé de Bahia me deu os quarenta, eu saí com Karolina e Anselmo.
"Vamos contar o dinheiro, Anselmo. É vinte pra tu e vinte pra eu. Eu vou contar, pronto. Um pra eu, um pra tu, um pra eu. Um pra eu, um pra tu, um pra eu.
Anselmo, besta, com as butuca em cima de Karolina, nem prestava atenção à minha contagem.
E eu tô lá: "Um pra eu, um pra tu, um pra eu. Um pra eu, um pra tu, um pra eu. Pronto, Anselmo. Aqui tá o teu e aqui tá o meu. Agora tu vai voltar a tocar até de manhã, e guarda minha sanfona que eu amanhã eu vou buscar. E eu já vou com Karolina."
Chegamos na banca de Sá Marica. "Sá Marica, cervejinha, cervejinha!" Sá Marica passou a cervejinha pra eu, nós bebemos, "Outra cervejinha!", bebemos a outra. Aí já tava mesmo perto dali, do pé de sombrinhão onde minha egüinha tava amarrada. Chegamos perto da egüinha, acoxei a cilha, passei a perna, joguei Karolina na garupa, saímos escondidos pelos fundos, fomos embora.
Aí Karolina disse pra mim:
"Olha, Gonzaga! Puxa mesmo que a cabrueira vem aí atrás, parece que eles tão querendo botar gosto ruim no nosso amor!"
"Não diga isso, Carolina!"
Salpiquei a espora no sovaco, no vazio dessa égua. A egüinha se abaixou... Saiu danada, chega saiu baixinho...
Piririco, piririco, piririco, piririco, piririco, piririco, epa! Escoramos na beira do rio. O riacho tava cheio, rapaz. Aí a égua refugou água. "E agora, Karolina?"
"Vamos nos esconder dentro das moitas, aí por dentro do mato! "
Nós entramos no mato, a negrada vinha atrás, riscou também na beira do rio. Nós escutamos o converseiro deles:
"É, sumiram... Se encantaram... Se escafederam. Vamos caçar eles?"
"Hôme, vamos voltar pro samba, que ainda tem umas duas horas de forró..."
"É mesmo, vamos voltar."
A cabrueira voltou, e nós três ali dentro das moitas: eu, Karolina e minha égua.
E ali nós três, escutando a cantiga das águas.
Tirei a sela e lavei a égua.