Construção
                          
                               Amou daquela vez como se fosse a última
  Beijou sua mulher como se fosse a última
  E cada filho seu como se fosse o único
  E atravessou a rua com seu passo tímido
  Subiu a construção como se fosse máquina
  Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
  Tijolo com tijolo num desenho mágico
  Seus olhos embotados de cimento e lágrima
  Sentou pra descansar como se fosse sábado
  Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
  Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
  Dançou e gargalhou como se ouvisse música
  E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
  E flutuou no ar como se fosse um pássaro
  E se acabou no chão feito um pacote flácido
  Agonizou no meio do passeio público
  Morreu na contramão atrapalhando o tráfego
  
  Amou daquela vez como se fosse o último
  Beijou sua mulher como se fosse a única
  E cada filho como se fosse o pródigo
  E atravessou a rua com seu passo bêbado
  Subiu a construção como se fosse sólido
  Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
  Tijolo com tijolo num desenho lógico
  Seus olhos embotados de cimento e tráfego
  Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
  Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
  Bebeu e soluçou como se fosse máquina
  Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
  E tropeçou no céu como se ouvisse música
  E flutuou no ar como se fosse sábado
  E se acabou no chão feito um pacote tímido
  Agonizou no meio do passeio náufrago
  Morreu na contramão atrapalhando o público
  
  Amou daquela vez como se fosse máquina
  Beijou sua mulher como se fosse lógico
  Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
  Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
  E flutuou no ar como se fosse um príncipe
  E se acabou no chão feito um pacote bêbado
  Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado
  
  Por esse pão pra comer, por esse chão prá dormir
  A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
  Por me deixar respirar, por me deixar existir,
  Deus lhe pague
  Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
  Pela fumaça e a desgraça, que a gente tem que tossir
  Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair,
  Deus lhe pague Pela mulher carpideira pra nos louvar e
  cuspir
  E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
  E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir,
  Deus lhe pague
  
  
  
  1971 © by Cara Nova Editora Musical Ltda.