O Desejo
                          
                               O tempo é cruel, mas é tudo que tenho
  Tudo mais é sobra, lixo, lata
  Prata barata que empenho
  Sim, o tempo passa, a vida segue
  Não estanca o corte
  Hoje eu não temo a morte
  Azar ou sorte?
  
  Não há luz que me cegue
  Nem há luz que eu siga
  Estou só à beira do caminho
  A solidão é minha amiga
  Lá fora a luz de outono invade a cidade
  Lá fora é onde a vida pulsa, inculta e bela
  Comédia grega, tragédia russa
  
  Eu estou lá e ouço o alarido surdo
  O estampido seco das ruas
  Esquinas, vielas
  Enquanto você guardado por deus
  Conta seus metais por detrás das janelas
  
  Você faz planos, planeja
  Deseja, o desejo sangra
  Quer uma casa em Angra
  Quer carro, ipad, família
  Filhos na universidade
  
  Você quer rezar, mas para quem?
  Se os deuses estão mortos
  Não há mais divindade, ritos
  Ninguém pra ouvir você no confessionário
  Na noite escura, gelada, vazia
  Contando os seus pecados sem perdão
  Sua omissão por não dar a mão
  Ao irmão que precisa de cigarros
  Comida, água, consolo, camisa
  
  Tanta pobreza humilhada
  Tanto canalha no topo
  Você é feliz, ma non troppo
  Porque nenhum bem lhe basta
  E a falta, a falta, a falta
  A falta, sua vida devasta
  
  Você faz planos, planeja
  Deseja, o desejo sangra
  Quer uma casa em Angra
  Quer carro, ipad, família
  Filhos na universidade
  
  Seu orgulho te traiu e te jogou no chão
  
  No Arizona a bandeira subvertendo a questão
  A marcha da falência dos valores da nação
  E quando o salvador é o próprio vilão
  Ele salva o velho mundo
  Com uma bala de canhão, bum!
  
  Eu sou cachorro louco
  Que anda solto pelo mundo
  Sem tempo pra ser nada
  Além de vagabundo
  Eu vou com a galera
  Até o topo do mundo
  Zeca Baleiro e Charlie Brown, uh!
  Quebrando tudo
  
  Você se olha no espelho
  E vê que tudo é mentira
  A vida é uma mentira
  Felicidade, mentira
  O amor, mentira covarde
  Olha pro relógio
  E vê o quanto é tarde
  Tarde demais pra ser feliz
  Seu corpo clama por calma
  Mas em sua alma
  Quanta ferida sem cicatriz
  
  Quem tudo quer nada tem
  Dizia o cego na porta da igreja
  Se a paixão morreu
  Diga amém! e assim seja
  Pra todo mal vem o bem
  E tudo mais
  Nessa dura, dura peleja
  
  Você faz planos, planeja
  Deseja, o desejo sangra
  Quer uma casa em Angra
  Quer carro, ipad, família
  Filhos na universidade
  
  Você faz planos, planeja
  Deseja, o desejo manda
  Quer ter guitarra e banda
  Ir à hangares, jantares
  Adular endinheirados
  
  No silêncio da noite sem sono
  Você se sente como um cão sem dono
  E se pergunta o que restou do amor
  Do sonho, pura ambição
  Só suor, lágrimas, sangue
  Perda, pó e solidão
  E pra dor que rói a carne tesa sob a pele fina
  Não há um só remédio em toda medicina