Confissão de Caboclo
                          
                               Sinhô dotô delegado
  Digo a vossa sinhuria
  Qui inté onte eu fui casado
  Cum a muié qui im vida
  Se chamô Rosa Maria
  Nóis casêmo e nós vivia
  Como pobre, é verdade
  Mas a gente se sentia
  Rico de felicidade
  Lá pras banda onde eu morava
  No lugá Chão da Cutia
  Morava tombém um cabra
  Chamado Chico Faria
  
  Esse cabra antigamente
  Tinha gostado de Rosa
  Chegaro inté a sê noivo
  Mas num fizero a introza do casamento
  Prumode um padrinho de Maria
  Tê dismanchado essa prosa
  Entoce adispois qui nóis casêmo
  O meu rijume era vivê trabaiando
  Sem da muié tê ciúme
  A muié por sua vez
  Nunca me deu cabimento
  De eu pensá que ela fizesse
  Um dia um farcejamento
  Mas, seu dotô
  Tome tento no resto da minha história
  Qui o ruim chegô agora
  
  Se não me faia a memória
  Já faz assim uns três mêis
  Qui o moço, Chico Faria
  Quase sempre, mais das vez
  Todo prosa, todo ancho
  Avisitava o meu rancho
  
  Pur aí discunfiado
  Como quem qué e não qué
  Eu fui vendo qui o marvado
  Tentava a minha muié
  Ou tentação ou engano
  Eu fui vendo a coisa feia
  Pru derradêro eu já tava
  Cá mosca detrás da oreia
  
  Onte, já de tardezinha
  Meu cumpadre, o Quinca Arruda
  Mi chamô pra nóis dança
  Num samba lá na Varginha
  Na casa de mestre Duda
  
  Entonce Rosa Maria
  Sempre gostô de sambá
  Mas, porém, de tardezinha
  Me disse discunfiada
  Qui pru samba ela não ia
  Qui tava meio infadada
  Que percisava se deitá
  
  Eu fiquei discunfiado
  Cum a preposta da muié
  Dispois qui tomei café
  Quage puro sem mistura
  Cum a faca na cintura
  Fui pru samba, fui sambá
  
  Cheguei no samba, dotô
  Arrepara agora o sinhô
  Quem era qui tava lá?
  O moço Chico Faria
  Qui quano foi me avistando
  Foi logo mi preguntando
  Cadê siá dona Maria?
  Num veio não, pra dançá?
  Não sinhô. Ficô im casa
  Pru cabôco arrispondí
  
  Senti entonce uma brasa
  Queimando meu coração
  Nunca mais pude tirá
  As palavra desse cabra
  Da minha maginação
  Perdí o gosto da festa
  E não pude dançá não
  
  O cabra, por sua vez
  Num dançava, seu doutô
  De vez im quando me oiava
  Assim cum um oiá de traidô
  Meia-noite mais ou meno
  Se dispidindo da festa, disse
  Adeus qui eu já vô
  
  Quando ele se arritirô
  Eu tombém me arritirei
  Atraiz dele, sim sinhô
  Ele na frente e eu atrais
  Se o cabra andava depressa
  Eu andava muito mais
  Noite iscura feito breu
  Nem eu enxergava o cabra
  Nem o cabra via eu
  
  Sempre andando, sempre andando
  Ele na frente, eu atrais
  Já nem se iscutava mais
  A voz do fole tocando
  Na casa de mestre Duda
  A noite tava mais negra
  Qui a cunciênça de Juda
  
  Sempre andando, sempre andando
  Eu fui vendo, seu dotô
  Qui o marvado ia tumando
  Direção da minha casa
  Minha casa, sim sinhô
  Já pertinho do terrêro
  Eu mi iscundí pru detraiz
  De um pé de trapiazêro
  
  E abaixadinho e iscundido
  Prendi a suspiração
  Pra mió vê e ouvi
  Qualé era a sua intenção
  
  Seu dotô, repare bem
  Do mesmo jeito que faiz
  Um ladrão pra vê arguém
  Num tendo visto ninguém
  Ele na minha porta bateu
  E lá de dentro uma voiz
  Bem baixinho arrispondeu
  Ele entonce, cá de fora
  Quem tá bateno sou eu
  
  Nisso eu vi abri a porta
  A seu douto a esperança tava morta
  Tava morto o meu amô
  E na iscurideza da noite
  Uma voiz se iscuitô
  
  Tá aqui seu Chico essa carta
  Qui há tempo tinha iscrivido
  Pra mandá pra voismicê
  Pru favô num leia agora
  Vá simbora, vá simbora
  Qui quando chegá im casa
  Tem munto tempo pra lê
  
  Quando minhas oiça ouviu
  As palavra qui Maria
  Dizia pru disgraçado
  Eu fiquei anssim amalucado
  Fiquei anssim um cabôco
  Quando tá cheio de isprito
  Dum sarto como um cabrito
  Eu tava nos pés do cabra
  E sem querê dei um grito
  
  Miserave!
  E arrastei minha faca da cintura
  A seu dotô
  Naquela hora eu vi o Chico Faria
  Na bêra da sepurtura
  Mas o cabra têve sorte
  Sempre nessas circunstança
  Os cabra foge da morte
  
  Correu o cabra, dotô
  Tão vexado qui dexô
  A carta caí no chão
  Dei de garra do papé
  O portadô da traição
  E machuquei nas minha mão
  A honra, dotô, a honra
  Daquela farsa muié
  
  Aquela muié qui um dia
  Jurô aos pé do artá
  Qui inquanto tivesse vida
  Haverá de me honrá
  E me amá cum todo amô
  Dispois oiando pra carta
  Tive pena, seu dotô
  Di num tê aprendido a lê
  Pra lê ali nas letra iscrivida
  As palavra que Maria dizia pro traidô
  Tive pena, sim sinhô
  Mas que havera de fazê
  Se eu nunca aprendi a lê
  Maria me atraiçoô
  
  E quando eu vi a miserave
  Na iscurideza da noite
  Dos meus óio se escondê
  Sem deixá nem sombra inté
  Entrei pra dentro de casa
  Pra me vinga da muié
  
  Dotô, que hora minguada
  Maria tava ajueiada
  Chorando com as mão posta
  Como quem faiz oração
  E oiando pra mim pedia
  Pelo cálice, pela hóstia
  Por Jesus crucificado
  Pelo amô que eu lhe afava
  Que eu num fizesse isso não
  
  Mas eu tava, dotô
  Eu tava cego de raiva, de paixão
  Sem dizê uma palavra
  Agarrei nas suas mão
  Levantei ela pra riba
  E interrei até o cabo
  O ferro da Parnaíba
  Pur riba do coração
  Sarvei a honra, dotô
  Sarvei a honra
  A pois não
  
  Depois que eu vi
  A Maria caí sem vida no chão
  Vim falá cum vóis mecê
  E confessá o meu crime
  E me entregá as prisão
  Se o senhor não acredita
  Se eu sô criminoso ou não
  Tá aqui a faca assassina
  Óia o sangue na minha mão
  E como prova da traição
  Tá aqui a carta, dotô
  
  Eu lhe peço um grande favô
  Antes de vossa mecê
  Me mandá lá pras prisão
  Me leia aqui essa carta
  Pra eu sabê como Maria
  Preparava a traição
  
  ("Seu Chico, Chão da Cotia
  Digo a vossa senhoria
  Que só lhe faço essa carta
  Pro sinhô ficá sabendo
  Que eu não sô a muié
  Qui o sinhô tá entendendo
  
  Se o sinhô continuá
  Com seus debique atrevido
  O jeito que tem é contá
  Tudo, tudo a meu marido
  Se o sinhô é inxirido
  Encontrô uma muié forte
  O nome de meu marido
  Eu honro inté minha morte
  Sou de vossa senhoria
  Sua criada, Maria")
  
  Dotô!
  Dotô, o que é qui eu tô ouvindo
  Vós mecê leu essa carta ou não leu
  Tá me iludindo?
  Maria tava inocente?
  Em seu dotô, me responde
  Matei Maria inocente?
  Pru quê, seu dotô, pru quê
  Matei Maria somente
  Pru que num aprendi a lê
  Infeliz de quem não leu
  Uma carta do Abc
  Imagina agora o dotô
  Como é grande o meu sofrê
  Sô duas veiz criminoso
  Que castigo, seu dotô
  Que miséria, que horrô
  Que crime num sabê lê